quinta-feira, 29 de setembro de 2011

ABORTO E DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA LATINA: Desconstruindo o mito da proteção da vida desde a concepção!

ABORTO E DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA LATINADesconstruindo o mito da proteção da vida desde a concepção
por Roberto Arriada Lorea – Juiz de Direito do Rio Grande do Sul
Quando o debate sobre o direito ao aborto ingressa na agenda política brasileira,aqueles que são contrários à proteção integral dos direitos humanos das mulheres,retomam o discurso de que a Constituição Federal de 1988 protege o direito à vida desdea concepção.Sobre esse mito, o mito da proteção jurídica da vida desde a concepção, é quegostaria de abordar o tema da descriminalização do aborto no Brasil, com reflexos emoutros países da América Latina.A Constituição Federal vigente no Brasil não recepcionou a doutrina da proteçãoda vida desde a concepção, posto que deixou de fazê-lo expressamente, como serianecessário para que assim fosse interpretada, a exemplo do que ocorreu em outrospaíses.Tentando alterar essa realidade, o discurso conservador tem difundido, comsucesso, o mito de que a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São Joséda Costa Rica, de 1969) assegura a proteção da vida desde a concepção.Assim, afirma-se, como o Estado brasileiro é signatário da Convenção Americanade Direitos Humanos, qualquer tentativa de descriminalizar o aborto no Brasil – e outrospaíses da América Latina – afrontaria o ordenamento jurídico nacional, à luz do Pacto deSão José. Alguns operadores do Direito brasileiros, aprofundando-se no equívoco,sustentam que mesmo as hipóteses de abortamento legal já previstas no Código Penal de1940, hoje seriam inconstitucionais, face à proteção da vida desde a concepção,assegurada nesse Pacto.Referido Pacto, no artigo 4º, inciso I, estabelece que “toda persona tiene derechoque se respete su vida. Este derecho estará protegido por la ley y, en general, a partir delmomento de la concepción. Nadie puede ser privado de la vida arbitrariamente”.Sustentar que esse dispositivo impede que os Estados signatários do Pactodescriminalizem o aborto, revela enorme desconhecimento sobre a construção históricada Convenção Americana de Direitos Humanos, ou, pior ainda, resvala para a esfera dadesonestidade intelectual.
Isso porque o órgão competente para interpretar o Pacto de São José é aComissão Inter-americana de Direitos Humanos, CIDH, a qual, ao apreciar o caso 2141,contra os Estados Unidos da América, decidiu (Resolução 23/81, de 06 de março de 198)que o direito ao aborto não viola o artigo 4º, inciso I, da Convenção Americana de DireitosHumanos.Curiosamente, esses mesmos operadores do Direito não mencionam a Resolução23/81, documento imprescindível para pensar juridicamente o direito ao aborto no Brasil ena América Latina.Com o objetivo de contribuir para o nível do debate sobre o direito ao aborto, naperspectiva dos Direitos Humanos, procurarei destacar – praticamente transcrevendo-os – os principais fundamentos da decisão da CIDH. Registre-se que a CIDH é o organismo daOrganização dos Estados Americanos, OEA, responsável pela observância e respeito aosDireitos Humanos.Podemos situar o início da construção do Pacto de São José, na ConferênciaInter-americana sobre Problemas da Guerra e da Paz, realizada no México, em 1945. cujaresolução XL, determinou que o Comitê Jurídico Inter-americano, sediado no Rio deJaneiro, formulasse um projeto de uma Declaração Internacional dos Direitos e Deveresdo Homem.Na Conferência Internacional dos Estados Americanos, realizada em 1948, emBogotá, debateu-se o texto, cuja redação original, em seu artigo 1º, tratando do direito àvida, estabelecia que “toda persona tiene derecho a la vida. Este derecho se extiende alderecho a la vida desde el momento de la concepción”.Ao final dos trabalhos, o texto foi modificado, ficando com a seguinte redação“Todo ser humano tiene derecho a la vida, libertad, seguridad, o integridad de supersona”.Essa modificação ocorreu para que se harmonizasse o texto da Conferência deBogotá às legislações nacionais dos Estados, as quais admitiam basicamente cinco tiposde abortamento legal: A) para salvar a vida da mãe; B) na gravidez decorrente de estupro;C) para proteger a honra da mulher honrada; D) prevenir a transmissão de doençahereditária ou contagiosa, e; E) por razões econômicas.A mudança no texto, retirando-se a referência à proteção da vida do feto,harmonizou-se com as legislações então vigentes, que admitiam o aborto em uma oumais das hipótese referidas, nos seguintes países: Argentina, Brasil, Costa Rica, Cuba,
Equador, Estados Unidos, México, Nicarágua, Paraguai, Peru, Porto Rico, Uruguai eVenezuela.Assim, fica claro que a Conferência de Bogotá, de 1948, enfrentou a questão daproteção da vida desde a concepção e decidiu não adotar uma redação quecontemplasse essa proteção, justamente para não restringir o direito ao aborto entãoexistente nas legislações nacionais dos Estados signatários da Declaração Americanados Direitos e Deveres Fundamentais do Homem.Em 1968, quando da preparação da Conferência de São José da Costa Rica, ondeseria debatido e votado o texto da Convenção Americana de Direitos Humanos,novamente houve a tentativa de aprovar um texto que contemplasse a proteção da vidadesde a concepção.Nessa oportunidade o projeto previa o direito à vida, voltando a introduzir oconceito de proteção do feto: “Este derecho estará protegido por la ley desde el momentode la concepción”.Todavia, ainda antes de ir a votação, o projeto de Convenção foi submetido àComissão Inter-americana de Direitos Humanos e ao Conselho da Organização dosEstados Americanos. Nos debates que se seguiram, especialmente em continuidade aoque fora já debatido na Conferência de Bogotá, decidiu-se apresentar a seguinte propostade redação: “Este derecho estará protegido por la ley y, en general, desde el momento dela concepción”.Durante a Conferência de São José, a delegação do Brasil apresentou emendapropondo a eliminação da frase final do parágrafo, para que fosse suprimida qualquerreferência à proteção do feto.A delegação dos Estados Unidos apoiou a proposta brasileira, enquanto adelegação da República Dominicana apresentou proposta em separado, com o mesmoobjetivo. Em sentido contrário, a delegação do Equador, propôs que se retirasse aexpressão “em general”.O texto final manteve o compromisso adotado na Conferência de Bogotá,harmonizando-se com as legislações nacionais que contemplavam o direito ao aborto.Assim, o texto aprovado em São José, propositadamente, não assegurou a proteção davida desde a concepção como uma regra absoluta, justamente para não conflitar com aslegislações nacionais que garantiam o direito ao aborto.Essa análise da construção histórica do Pacto de São José, feita por ocasião doexame do caso 2141, firmou o entendimento da Comissão Inter-americana de Direitos
Humanos no sentido de que o direito ao aborto não viola o artigo 4º, inciso I, do Pacto deSão José.Portanto – ao contrário do que afirma o mito – não há qualquer obstáculo jurídico àaprovação da reforma legal para descriminalizar o aborto no Brasil, o que virá a atenderos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro (especialmente asConferências da ONU realizadas no Cairo, 1994 e em Beijing, 1995) para que sejaassegurada a proteção integral dos direitos humanos das mulheres.

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